1. |
Ainda
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2018.02.21 (Ainda)
Ainda procuro nas ruas
o teu andar familiar.
Como é que se faz para se ser cego?
Odeio-me por
ainda. Ainda.
Ainda procurar parecenças
em estranhos.
Olhar para os pés dos outros até
encontrar umas sapatilhas iguais às tuas
e depois subir
e confirmar outra cara.
Ainda. Já não era suposto.
Já faz demasiado tempo.
Dizem-me que é demasiado tempo.
Perdi um ano inteiro nestes olhos.
Ainda. Ainda te procuro
nas ruas onde andámos.
Ruas onde ando. Onde andas.
Somos vizinhos. Ainda.
A saudade sabe-o.
Ainda escrevo sobre. Ainda.
Tudo ainda é ainda.
Saio de casa. Lembro-me.
Volto a casa. Lembro-me.
Como é que se faz para se ser turista
onde se morre?
Esta memória será permanente.
Todos o sabemos.
Ainda penso todos os dias.
Ainda. Ainda.
As ruas ainda são estas ruas.
Lembro-me das escadas. Do movimento.
Onde andas? Ainda.
Eu ainda. Ainda.
Ainda ando aqui.
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2. |
Confusão
01:50
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2018.04.05 (Confusão)
A tua forma e a do poema confundem-se.
Tudo ficou igual.
Tudo ficou, parece-me,
exageradamente o mesmo.
E a minha cabeça tornou-se
um personagem meu,
ou eu tornei-me
um personagem da minha cabeça.
Nada mais parece ficar quando
se cansa toda a filosofia.
O tempo passou primeiro que eu
e tudo permanece igual lá fora.
Só morrendo definitivamente.
Só indo para um mar a sério,
um mar de verdade
com ondas e espuma e facas.
Ainda assim
não sei se seria suficiente.
Porque encontro sempre a tua forma
na forma geral das coisas,
e tu surges em mim
como surges em objetos inanimados.
Tudo se confunde. Tudo é o mesmo.
Já só gosto de coisas
onde te possa encontrar.
Já vou – acho eu – para te ver.
Agora precisava de aprender palavras novas,
palavras de ternura.
Recuperar o vocabulário que
desse alento a este sono
e ao meu cansaço.
Precisava de uma língua nova
que fosse capaz de abrir
uma língua morta.
Que me alargasse as letras,
os adjetivos, a boca
noir, rouge.
Não sei que frase me trará
o teu nome de volta.
Às vezes tenho muito medo
de me ter tornado
irremediavelmente triste.
Porque um coração só acredita na sua geometria
mesmo que seja
a geometria da explosão.
O coração é um animal invencível:
perde até que só possa ganhar.
Um coração não pode resolver as coisas a bem.
Não pode.
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3. |
Pássaros
00:34
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2018.09.04 (Pássaros)
Trago os meus poemas todos demasiado cansados.
É verão mas parece outono,
as nuvens estão baixas
e o mar ao fundo não faz barulho que assuste.
Todas as distâncias parecem ter mudado:
os metros milímetros
os oceanos lagos
o amarelo roxo.
Mesmo os pássaros parecem ter desistido.
Parados na relva
parecem esperar que a estação mude por si.
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4. |
Contenção
01:37
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2020.10.21 (Contenção)
Eu procuro acalmar o calor dos órgãos,
o jogo de órgão para órgão,
o sangue negro que os alimenta.
É difícil ver tudo isto e continuar vivo.
Há demasiadas coisas, demasiados sons.
Como manteremos nós os escrúpulos,
os órgãos nos seus lugares e funções
sabendo tudo isto?
Nós nada podemos face a esta poluição.
Não há nenhuma saída
que não nos custe o silêncio,
nenhum lugar
onde as palavras sejam mais prováveis.
Ninguém mais do que eu
pode ser assim tão ingrato com o tempo.
Não posso fazer conta com nada do que vejo.
Não existem linhas retas na natureza,
de nada se pode elogiar a coerência,
sequer a forma.
Tudo se divide ao meio em mais escuro,
é assim com tudo,
a primeira coisa que te vier à cabeça.
Em caso de necessidade
até os nomes desaparecem.
Com o que resta desta força
teremos de conter o frio,
amortecer as dores de um lado
e do outro
e concentrar tudo no centro,
órgãos apertados contra órgãos,
ossos comprimidos,
toda a força na cabeça
concentrada em pleno eixo.
Isto é o que mais se assemelha
a um plano sustentável:
conter os custos, reduzir
os movimentos ao mínimo.
A riqueza que há é este
nada mais, nem um pouco.
Isto até pode ser suficiente
se não desperdiçarmos nada.
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5. |
Fade Out
01:04
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2018.10.08 (Fade Out)
Acabamos por voltar
sem dar conta
a este lugar específico
e o corpo afinal resistiu.
Muito pouca coisa mudou afinal,
só estou agora
um pouco mais longe de mim.
Mas o tempo vai-se enchendo com outras coisas
e vamo-nos habituando.
O corpo aguenta tudo. Resiste a tudo.
Temos uma força estranha. Invencível.
Uma força cansada.
Eu sou este corpo frágil
que dança de medo
este corpo cheio de tristeza e força
esta força puramente frágil.
E volto sem dar conta
a este lugar específico
com muito menos trunfos na manga,
sem ingenuidade nem coragem,
sem um plano.
A caneta está leve
a folha levanta com o vento
e eu distraio-me facilmente
com as conversas do lado.
O poema lentamente dissipa-se
num fade out de nada.
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